7 de out. de 2010

A surpresa da Revolução de 1910 - Testemunho de Madre Rita Amada de Jesus



5 de Outubro de 1910

Nesta altura, admirava-me da hibernação prolongada das serpentes, pois decorreram uns sete anos sem tribulações dignas de registo. Nem podia passar-me pela imaginação o ataque mortífero que se avizinhava, sob a lei do mais forte.
A 5 de Outubro de 1910 estala a Revolução. De seguida, o decreto do dia 8 restaura as leis pombalinas, com a ordem de expulsão dos Jesuítas, portugueses e estrangeiros, e sem efeito, também, as leis de 1834, com o objectivo determinante de extinguir os Conventos e Congregações Religiosas.
De um momento para o outro o Estado apoderava-se, com a prepotência de vencedor, dos bens das Congregações.
Vejamos, porém, os efeitos desta mutação política, em toda a sociedade portuguesa.

Pelo decreto de 8 de Outubro de 1910:

– Proíbe-se o funcionamento dos seminários, verdadeiros centros de formação e alfabetização e, além disso, fica interdito o uso da batina aos sacerdotes.
– Pretende-se laicizar o país, decretando-se a abolição do antigo juramento religioso de defesa da Imaculada Conceição, de antiga tradição, na Universidade de Coimbra. Extingue-se a Faculdade de Teologia e de Direito Eclesiástico na mesma Universidade.
– Suprime-se o ensino da Doutrina Cristã nas escolas primárias e decretam-se dias de trabalho todos os dias santos, com excepção do domingo. Atinge-se em cheio a família, decretando a lei do divórcio e considerando o matrimónio um contrato puramente civil (cf. H. dos Papas, p. 330 e H. Ecles. de Port., pp.234-235).

O ministro da Justiça, Afonso Costa, repõe em vigor as leis do Marquês de Pombal, figurino da perseguição à Igreja, sobretudo aos Jesuítas, que, de novo, são expulsos e encarcerados; e ainda as leis de Joaquim António de Aguiar contra as restantes Ordens Religiosas, cujos bens passam totalmente para o Estado.
Os Religiosos e Religiosas de Portugal, pertencentes a outras Congregações, poderiam permanecer no País, desde que não formassem comunidade. Era o mesmo que uma injecção de anestesia, com selo de eutanásia.
O nosso querido Director, P. José Lapa, como referimos atrás, natural da Índia e a viver no Colégio de S. Fiel, foi também atingido pela lei de expulsão, e por duplo motivo: por ser jesuíta e, ademais, estrangeiro. De um momento para o outro, tudo se desmoronou como um baralho de cartas; ao menos, aos olhos do laicismo altivo. Deus, porém, intervém, eficaz e sabiamente, sem que o homem laico o advirta.
Portanto, a nossa Congregação, igual a todas as outras, tinha apenas um prazo de 24 horas para abandonar as suas Casas, propriedades e recheios. A arma esgrimida pela propaganda revolucionária era o anticlericalismo. A minha preocupação maior era a defesa das irmãs e das crianças a nós confiadas pelos pais. Receava pela vocação das Religiosas e o futuro das meninas internas... eu, que tanto combatera, desde jovem, para livrá-las do mal das serpentes.
Todas as casas foram sequestradas e utilizadas pelo governo para fins diversos, excepto as Misericórdias. Nesse ambiente de terror, de incertezas e medos, quantas humilhações sofreram as Irmãs, por parte das autoridades civis e da plebe, que ardia em ódio clandestino contra a Igreja.
A melhor designação que encontro para dar um nome ao que aconteceu, em Louriçal do Campo, Colégio e Noviciado, é a do Juízo Final. Nem era para acreditar. O clima de paz e de progresso de tantas Irmãs, crianças e famílias, esboroou-se por um golpe secreto de má-fé, aplicado na cabeça das Instituições Religiosas. Todavia, o coração ficou imune face a tanta maldade; por isso, o amor desafiou a Revolução, no segredo. Até parece que os homens pouco ou nada sabem do poder de Deus, manifesto ao longo da História.
Quanto a nós, nem sequer cabia a permissão do recurso a tribunal, nem o menor esboço de contestação. O único caminho que resta naquela hora, é salvar a vida. Contestar significava rebeldia e ameaça de prisão para quem o fizesse. Portanto, obedecer à violência sem ser violento. Tornar-se escravo da lei, mais nada.
Mais uma vez, fica comprovado que, em qualquer revolução, seja à direita seja à esquerda, o clima de liberdade é só para o poder do grupo que a organiza. Impossível manter o equilíbrio do fiel da balança. Muita gente se vale, então, do clima de confusão e de incerteza, para satisfazer vinganças, ódios e toda a sorte de males, já no choco desde o tempo do pai Adão.
Desta vez, a Serpente atacou de tal modo que nem me deu tempo para respirar. Mas posso afirmar que, mesmo assim, o Senhor veio em ajuda do Instituto. A Providência Divina conta também com o nosso discernimento, sacrifício e poder de decisão.
Vamos, porém, descrever os acontecimentos por partes.
Ao receber da parte P. Director José Lapa a notícia de que tínhamos de abandonar a Casa, em menos de 24 horas, a sensação imediata foi a de gelo polar: deixou-me inactiva e pensativa. Quase impossível acreditar. Também o Pe. Lapa sofreu com a demência deste furacão.
Reuni as Irmãs e comuniquei-lhes a triste novidade...
Algumas choravam, em voz alta, sem poderem abafar a voz. Não só por elas que se viam perdidas e sem rumo, mas também pelo futuro de tanta criança, muitas delas pobres e abandonadas. Estas infelizes crianças ficaram em estado de choque, ao perceberem que algo de estranho acontecia; notavam que as Irmãs da comunidade andavam de um lado para o outro, nervosas, interpelando-se mutuamente sobre isto e aquilo, com as lágrimas nos olhos. Para onde ir? De facto, parecia-nos que não havia possibilidade de solução para tanto problema de uma só vez: apenas um prazo de 24 horas!
Insisti: – Não há tempo a perder. Vamos salvar já, de imediato, o que pudermos.
Antes de mais, pedimos ao Sr. Vigário do Louriçal do Campo, na Casa do Noviciado onde me encontrava, para retirar da capela o Santíssimo Sacramento. Tivemos também especial atenção às imagens e alfaias de culto, vindas de França, havia pouco tempo, e que não podíamos, de modo algum, abandonar a gestos de profanação. Procurámos assegurá-las, o melhor possível, entre famílias amigas. Depois, descobrimos a melhor maneira de enviar as crianças para suas casas ou de confiá-las a pessoas da nossa amizade até que os pais as viessem buscar. Nesse dia e nessa noite, ninguém teve tempo de pregar olho.

(do Livro “A mulher do povo e o dragão” do P.e Florentino Mendes Pereira, cmf)











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